sexta-feira, 4 de setembro de 2009

o qUE falAR SOBre a POÉTica de lauRA VINci

Muito além da aflição
por Paulo Sergio Duarte - 2007



Querem o tempo aflito dos tijolos de notícias nas colunas de jornal, o mesmo das pílulas que devem lhes acordar e, depois, o das outras para lhes adormecer; o dos moto-boys, que quando buzinam já passaram cinco pelo retrovisor, o tempo inerte do engarrafamento e o tempo vil que corta o ponto dos pobres coitados que chegam atrasados.


Querem o tempo sem antes nem depois, o do instante das bolsas em Wall Street, Frankfurt, Londres e São Paulo (maldito fuso horário que lhes obriga a esperar por Tóquio e Hong Kong).

Querem o tempo cheio – feito as burras do banqueiro – das agendas sem espaço até daqui a dois anos. O tempo rápido dos jatinhos, mas que tem que esperar para decolar e pousar (ao menos aqui e nos EUA). Desejam o tempo das férias no paraíso e dos intermináveis fins-de-semana. O tempo do check-in e do check-out, doméstico ou comercial.

O freqüente, da trepada rápida com a amante, e aquele de dilatados intervalos dos indolentes coitos nas mães dos filhos. Querem sempre o tempo do burocrático “Eu te amo” – repetido a torto e a direita.

Na verdade, não amam mais nada, pois foi este tempo que escolheram que lhes ama, lhes adora e a ele se entregam como escravos, crentes que são mestres.

Pois foi sempre outro o tempo perseguido por Laura Vinci.

Em contato com os seus trabalhos experimentamos um tempo perdido, não o da memória proustiana, mas aquele que foi seqüestrado pela vida contemporânea.

Escultora, seu tempo adere à matéria mesmo que esta seja o vapor d’água. Lembro-me quando a instalação das grandes bacias que evaporavam o delicado vapor foram expostas ao lado de um Volkswagen imbecil que fazia piruetas no ar, numa Bienal de São Paulo.

Havia uma clara insensibilidade na disposição dos dois trabalhos um ao lado outro. Mas havia algo de propedêutico, éramos, sobretudo o público leigo, preparados para sermos empurrados na estupidez contemporânea.

Como a virulência de um trabalho monumental, que se apresentava literalmente como um brinquedo de parque de diversões, com suas cores fortes e seus movimentos rápidos, era apresentada ao lado de uma experiência da delicadeza? E, no entanto, o tempo de Laura passava...

Já sei que não há espaço para falar do Centro Cultural São Paulo, do Arte Cidade e da 5ª Bienal do Mercosul, nos quais o tempo se dilata transportando a matéria.

Mas esta palavra é perigosa: matéria.

Dá margem a muita abstração. Escultora, insisto, Laura trabalha com materiais. Dessa vez, não é areia nem água, são mármores e maçãs.

“Que beleza!” está escrito numa obra de Mira Schendel.

E é assim que antevejo essa instalação, pelas fotos, antes de montada. Em Mira, sempre contida no essencial, introvertida, salvo nos “Sarrafos”.

Em Laura, agora, espalhada, mas “Que beleza!”. Com cor, o branco dos “Bloquinhos” e o vermelho das maçãs, vibrando e se opondo num contraste clássico, caro aos modernos.

Mas a festa para o olhar é breve. Logo será chamado a pensar. Uma oposição visceral alimenta o encontro dos materiais e seus tempos: o mineral do mármore e o orgânico das maçãs.

Um perene – o da pedra –; outro vai apodrecer diante de nossos olhos – o da maçã.

A decrepitude acelerada do ser vivo contrasta com a impávida permanência do mineral.

Mas há a questão da forma.

É uma instalação que agrega diversas naturezas-mortas. É óbvio que essas naturezas-mortas lançadas no espaço por Laura Vinci teriam seus vínculos muito mais com Cézanne e Chardin do que com Morandi.

São muito afirmativas. A solidez é Cézanne, a afirmação é Chardin.

No Brasil, temos um passado de dignas naturezas-mortas no século 19. Poucas, mas boas, o que é essencial – mas ainda contidas nos limites da academia.

Depois esperamos muito por Guignard, assim mesmo o gênero não consegue concorrer com suas paisagens de Ouro Preto. Mas as naturezas-mortas de Laura da Vinci são volumes. Arrumadas no espaço podem vir a ter diversas configurações.

Quem dirá qual é a original? Umas estão arranjadas entre volumes de mármores e algumas poucas maçãs. As famosas maçãs de Cézanne. Outras dividem o espaço com inúmeras maçãs. Todas fazem parte de um único trabalho, mesmo que nosso olho possa discernir, aqui e ali, unidades.

Já sabemos que Laura trabalha com o tempo e todo aquele que estudou direitinho história da arte sabe que, se os modelos vivos de Cézanne sofriam com os meses de tempo de pose – e Madame Cézanne foi uma das maiores vítimas –, ao contrário da disciplina da mulher e dos amigos, a natureza não se submetia às exigências do artista: as maçãs apodreciam diante dos olhos do pintor.

É estimulante essa polarização entre o mineral e o orgânico, essa convivência entre dois extremos sobre os quais vivemos.

Mas o que permanece, não vai apodrecer, são formas construtivas.

Lembram-me páginas dos livros de Lygia Pape tomando volume, jogados no espaço, sem a sua disposição hierática sobre a parede; “Bloquinhos” entregues com todo o corpo e magia, na sua permanência e brancura, esperando por novas maçãs, estas sim, que como nós, vão passar.

Quanto às maçãs, compra-se nas feiras (já que não são pintadas).

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